A circunstância e a fotografia - um exercício para o sentido de orientação

Ortega y Gasset, no seu livro "Meditações do Quixote" tem duas frases que me fazem voltar sempre ao livro:

"Eu sou eu e minhas circunstâncias. Se não salvo a ela, não salvo a mim."

"Há dentro de toda coisa a indicação de uma possível plenitude."

Tem uma ideia implícita nessa "circunstância", que nos coloca para fora de nós mesmos, se levarmos a sério. Uma pessoa não é só sua intimidade, o que traz carregado dentro de si; é também as relações que estabelece na realidade em que está vivendo. Da mesma maneira, se compreendermos que, de verdade, pode haver uma possível plenitude em todas as coisas, vamos entender essa frase como mais um convite para sairmos de nós e vivermos as relações à nossa volta, no mundo.

A fotografia é um exercício que ajuda muito na prática de reconhecer as circunstâncias e a plenitude que pode haver nas coisas. Não essa fotografia alucinada que muitas pessoas tiram de si mesmas em todos os lugares e depois deixam mofando no aparelho celular. E também não estou falando daquelas fotos hiper alteradas nos filtros, que chegam a distorcer a relação com o momento.

É claro que toda imagem é uma representação da realidade, é um recorte. Mas, se não perdermos de vista o ponto de partida, a dica didática de Ortega, como esse exercício pode ajudar a ver melhor a realidade em volta, e buscar nela a plenitude?

Posso falar de duas perspectivas opostas na fotografia, sobre o mesmo tema — o pôr do sol.

De um lado, a artista norte-americana Penelope Umbrico, que elabora instalações partindo de fotografias de pessoas postadas nas redes sociais. Ela fez um painel com dezenas de fotografias de pôr do sol, realizadas em diferentes partes do mundo, considerando o mesmo horário, a partir da busca da palavra-chave "pôr do sol" no Flickr. Sua obra leva à reflexão que, mesmo que você registre seu encantamento por esse momento do dia, e considere único o que você está vendo, ele será um entre milhões e não terá absolutamente nada de diferente dos outros. É uma provocação sobre a necessidade que muitas pessoas têm de registrar seus momentos. Para ela, a beleza em si do vivido não pode ser registrada, porque corre o risco de cair na mesmice diante de centenas de outras mesmas imagens, do mesmo momento especial individual de cada um.

Do outro lado, está a fotógrafa paulistana Gabriela Saueia e seu projeto "Depois das Seis". Há mais de dez anos, Gabriela olha o pôr do sol todos os dias, e isso acabou gerando uma série de outros produtos, para além da fotografia em si. Segundo ela:

"o projeto busca mostrar que existe muito mais cor ao nosso redor do que estamos acostumados a reparar, humanizando a cidade através do pôr do sol — um acontecimento diário que traz vida para as ruas — e procurando novas maneiras de transformar nossa relação com o lugar em que vivemos.

​apesar do entardecer acontecer todos os dias, é algo totalmente mutável e único — o céu está mudando a cada segundo e nada fica no lugar por muito tempo, mesmo nos dias cinzas. essas mudanças acabam sendo pequenos lembretes de como as coisas são efêmeras e como é importante estar presente no momento".

São fotografias tiradas de diferentes pontos da cidade, sempre depois das 6 da tarde (por isso o nome do projeto), mas sempre com a proposta de que cada dia é único e cada olhar para o céu é uma experiência de delicadeza.

Voltando a Gasset, penso que a compreensão da circunstância é uma forma de valorizar o que existe no entorno e poder tirar dela a plenitude que tem. Mas, a palavra compreensão não está aí só como recurso de linguagem. Compreender é uma palavra que vem do latim e significa "prender com as mãos", "apoderar-se".

O exercício de fotografar o entorno pode ser uma maneira de educar o olhar para o que está à volta; deixar de lado a domesticação do que se vê sempre, e também poder se orientar melhor no espaço, não só fisicamente, mas nesse caso, especialmente, simbolicamente. Pense que num momento a fotografia é de um pequeno detalhe; em outro momento, é de uma paisagem inteira. O simples fato de abrir e fechar a lente já é um exercício de orientação e de ampliação de horizonte consciencial.

Você pode concordar com um dos exemplos que eu dei, discordar das duas ou concordar com as duas, de acordo com a circunstância (!). Mas os exemplos são para dizer que tudo é passível de uma narrativa. E a fotografia pode ser uma grande aliada para ampliação dos sentidos, muito além da visão. Já tinha pensado nisso? Já tinha pensado que o senso de orientação é também um dos sentidos, assim como a visão?

Para saber mais sobre a artista Penelope Umbrico e conhecer seus outros trabalhos:
https://www.instagram.com/penelopeumbrico/

Para saber mais sobre o projeto da Gabriela Saueia:

https://www.projetodepoisdasseis.com/


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