Memórias - as luzes e sombras da nossa existência.
Tenho estado num momento meio Japão, meio memória nos últimos dias. E é sobre isso também esse texto.
Acabei de ler um livro de uma autora contemporânea japonesa, Yoko Ogawa. O livro se chama “A polícia da memória” e é uma distopia sobre a perseguição e aprisionamento das memórias e dos objetos dos moradores de uma ilha, que vai deixando os corações e os cotidianos daquelas pessoas cada vez mais vazios e mais presos às tarefas do presente, à utilidade de suas vidas e à sobrevivência. Cada um que resiste com objetos escondidos (como fotografias, livros, rosas, caixinhas de música…) é perseguido e desaparece do cotidiano, sendo preso ou morto.
Num trecho do livro, em um diálogo entre R (um personagem que conseguiu a proeza de não apagar suas memórias e por isso precisa viver escondido, para não ser morto) e o balseiro que ajuda a escondê-lo na casa da personagem feminina, o balseiro questiona R sobre a serventia da memória, uma vez que ele mesmo já não se lembra de nada que foi destruído e não sabe a importância que esses objetos e lembranças poderiam ter na vida dele. Se foram apagados, é como se não tivessem existido, afinal de contas.
- O senhor… podia me explicar… se eu… ãhn… Supondo que um dia eu consiga me lembrar de alguma coisa, de que isso me servirá?
- Não é para servir para alguma coisa. As pessoas são livres para usar suas memórias como quiserem.
- Mas quando nos lembramos de alguma coisa, isso acontece em algum lugar, aqui ou aqui, não é mesmo? - questionou o velho, indicando com a mão a cabeça, e depois o peito. - Não importa qual seja, mesmo a mais maravilhosa lembrança fica em um lugar onde ninguém a vê… e depois, ela se apaga… invisível para os outros. Nem eu mesmo sou capaz de guardar as minhas próprias memórias intactas. Não resta traço, depois que elas se vão. O senhor acha mesmo que vale a pena tenta ressuscitar à força o que sumiu? (p. 256)
E em outro trecho, a resposta vem em forma de reflexão de R:
- As memórias não são algo que se acumule simplesmente. Elas vão se transformando, mudando de lugar com o tempo, desaparecendo aos poucos. Claro, a forma como as coisas desaparecem de sua memória, quando há um sumiço, é completamente diferente.
- Qual a diferença?
- As minhas memórias não são, por assim dizer, arrancadas com raiz e tudo. Mesmo as coisas esquecidas deixam algum traço em algum lugar do coração. Como pequenas sementes. Se algo as desperta, voltam a crescer. Mesmo quando a memória em si desaparece, ela deixa em seu lugar alguma coisa: um tremor, uma dor, um prazer, uma lágrima.
-Às vezes, fico imaginando como seria observar seu coração, tê-lo entre as mãos. É um órgão de consistência gelatinosa que cabe na palma da mão. Não pode apertar muito, pois se desmancha; mas tem de segurá-lo firme, pois escorrega. Como ele vem de dentro do seu corpo, de um lugar recôndito, é muito quente. Quando fecho os olhos, sinto o calor do seu coração, e, uma a uma, todas as coisas que eu perdi me vêm ao espírito. Posso imaginar que todas as suas memórias estão na palma da minha mão. Não seria uma sensação maravilhosa? (p. 92 e 93).
Uma característica desse livro é que ele é tátil. As texturas, os cheiros, os sons e, principalmente, o tempo e o contratempo da narrativa (entre silêncios e acontecimentos) são muito marcados. Acho que isso torna ainda mais interessante o fato de ser sobre o desaparecimento da memória, porque assim como diz um dos personagens, a memória torna táteis nossos sentidos. É por eles que ela aparece - pela dor, pela lágrima. É como se pudéssemos tocar o coração de alguém, o recôndito da alma. Não é uma serventia prática; é uma confirmação de humanidade, muito mais importante que qualquer serventia.
E aí, paralelo a isso, no dia 19 de novembro de 2024 aconteceu a abertura da exposição de fotografias “A vida que se revela", no centro cultural Japan House, em São Paulo. Eu estive na abertura e pude conhecer uma das fotógrafas da exposição, a senhora Tokuko Ushioda, que aos 84 anos de idade, está pisando no Brasil pela primeira vez, para apresentar suas fotografias de cotidiano.
Além dela, há também fotografias de outra mulher, mais jovem, Rinko Kawauchi, que também apresenta suas memórias íntimas, de um cotidiano simples no Japão.
As fotos das duas artistas são tão lindas quanto cotidianas, e mostram um olhar atento ao dia-a-dia, que vai elaborando as narrativas não somente de um tempo vivido, mas de uma qualidade de existência - uma linha do tempo de vidas de gerações diferentes que, apesar das dificuldades do dia-a-dia, reconhecem nos fazeres mais simples, os gestos mais marcantes. A senhora Tokuko apresenta, aliás, além de suas fotos, alguns conteúdos de latas de memória que ela guardou por anos a fio, como brinquedos das crianças que hoje são adultas, ou objetos de sua infância e coisas de seus avós.
Acho muito interessante essa peculiaridade de guardar a memória nas latinhas. Também aparece essa prática no filme “Dias Perfeitos", em que Hirayama, o personagem revela suas fotos dos komorebi de cada dia, e depois as guarda em latas, num armário.
A memória é um tema muito importante. É nela que se enquadram as luzes e sombras de nossa existência. Não são todas as memórias que gostariamos de manter, e muitas delas insistem em permanecer quando gostaríamos de esquecer. Por outro lado, outras vezes, gostaríamos de lembrar de coisas que misteriosamente se apagaram, e contamos com a ajuda de outras pessoas para nos ajudar a situar e compor partes da nossa narrativa pessoal. Mas, de qualquer modo, são essas composições de luzes e sombras que vão adensando nosso coração e tornando-o palpável, para além da sobrevivência do dia-a-dia. Lembrar é um tesouro reservado a nós.
E pelas lembranças das fotógrafas em exposição no Japan House, pude chegar um pouco mais perto também da importância da narrativa para a escritora Yoko. E elas puderam trazer a mim - que sou ocidental e tenho lá minha própria relação cultural com o tempo - uma ponte para encontrá-las em nossa humanidade comum.
O personagem R tem razão. As geladeiras da senhora Tokuko e a infância iluminada da filha de Rinko podem não ter serventia prática para nós. Mas têm mais semelhanças conosco e com as pessoas que somos, do que o dia-a-dia atribulado e a distância geográfica poderia supor.
Recomendo a leitura junto com a visita à exposição.
Para saber mais:
Exposição “A vida que se revela”, em cartaz no Japan House (Avenida Paulista, SP):