Bordar a cidade - um exercício de acupuntura criativa com agulha e linha.

Tenho pensado ultimamente no exercício de bordar fotografias como uma prática de “acupuntura criativa”, e ela começou a se formar para mim a partir da experiência que realizei em outubro de 2024, de fotografar e bordar o centro da cidade, numa parceria com o Estudio Ceda el Paso.

Naquela ocasião, formamos um pequeno grupo e dividimos a oficina em dois momentos: primeiro, iríamos caminhar pelo centro da cidade num domingo, com os sentidos abertos (tal qual ensina David le Breton, em seu livro “Antropologia dos sentidos”). Assim diz o autor no início da obra:

“Para o homem não existem alternativas senão experimentar o mundo, ser atravessado e transformado permanentemente por ele. O mundo é a emanação de um corpo que o penetra. Um vai e vem instaura-se entre sensação das coisas e sensação de si. Antes do pensamento, há os sentidos. (…) A antropologia dos sentidos implica deixar-se imergir no mundo, estar dentro, não diante, e sem desistir de uma sensualidade que vem alimentar a escrita e a análise. O corpo é profusão do sensível.(…) Entre a carne do homem e a carne do mundo, nenhuma ruptura, mas uma continuidade sensorial sempre presente.” (p. 11)

Fotografaríamos a paisagem, a partir de nossas impressões de estar plenamente presente e não apenas de passagem ali naquele lugar.

Foi uma experiência intensa, e foi possível compreender melhor o porquê de estarmos usando as ruas (especialmente do centro da cidade) como locais de simples passagem e não lugares para estar. Os cheiros, os sons (mesmo sendo domingo), a estética, os aspectos humanos e sociais, a transformação arquitetônica que tem colocado muitos prédios em ruína… tudo é de uma intensidade tão grande, que se abrirmos demais os sentidos, a chance de cairmos em exaustão ou de ficarmos enfastiados, é bem grande.

Depois, passada uma semana, voltamos a nos encontrar, com as fotos escolhidas de cada participante, e aí tínhamos o objetivo de conversar um pouco sobre as escolhas feitas, e depois… bordar uma das fotos.

É aí que o conceito de acupuntura começa a fazer sentido. Trouxe o conceito exatamente do movimento criado pelo arquiteto catalão Miguel Solá nos anos 90, e popularizado pelo então prefeito de Curitiba, Jaime Lerner. A ideia era uma:

“analogia com a acupuntura medicinal e com o princípio de olhar o tecido urbano como um organismo vivo que está sempre passando por mudanças constantes. Dessa forma, assim como a acupuntura em corpos humanos, a técnica urbana deve ser executada por meio de intervenções precisas para “curar” um ponto da cidade que tenha efeito em cadeia criando outras melhorias no seu entorno. Os principais objetivos são a ressignificação e regeneração de espaços de forma imediata, efetiva e funcional. Para alcançá-los, é fundamental prestar atenção na realidade urbana, encontrar as importâncias da cidade, observar todos os seus detalhes, resgatar sua identidade cultural, propor soluções não habituais e promover planejamento participativo e democrático. Existem oito princípios que devem ser comuns em qualquer prática de acupuntura urbana, sendo eles: ponto sensível, cenário, ato rápido, participação, educação, abordagem holística, pequena escala e criação de lugares”.

Se estávamos só vivendo a experiência sensorial no centro da cidade, e se não tínhamos o objetivo de transformar o entorno, por que então usar a palavra “acupuntura” extraída desse conceito de planejamento urbano?

Compreendi que a experiência de bordar as fotografias tiradas nessa caminhada foi uma prática de acupuntura criativa, porque embora não tivéssemos a pretensão de intervir no espaço, pudemos ressignificar nossa relação com a rua e com a cidade, num exercício ao mesmo tempo de distanciamento do olhar e dos sentidos vividos na prática do dia anterior, e da aproximação daquela experiência nos movimentos simbólicos de linha e agulha e intervenção de outras imagens sobre a fotografia da cidade.

Uma conversa sobre a experiência, logo após a caminhada.

Pudemos falar sobre nosso mal estar e pudemos também refletir em grupo sobre os rumos da cidade, especialmente após a pandemia quanto ao nosso distanciamento das relações dadas no ambiente da cidade. Pudemos ainda perceber verdadeiramente a nossa necessidade de fechamento dos sentidos como forma de sobrevivência na hostilidade da miséria, que nos deixa impotentes e muitas vezes desesperados com o futuro.

A acupuntura regenera órgãos do corpo a partir da aplicação precisa da agulha em pontos nevrálgicos que necessitam de atenção. Ao contemplarmos nossas fotografias, falarmos da experiência, escolhermos símbolos para o bordado, cores para a costura e, finalmente, ao iniciarmos os furos na superfície, tudo isso fez com que aquele grupo pudesse repensar a cidade e seus lugares como indivíduos nessa urdidura e trama espacial e temporal da cidade.

Manoel de Barros dizia na sua poesia que:

“o olho vê

A lembrança revê

A imaginação transvê.

É preciso transver o mundo”.

Algumas fotos tiradas pelo grupo durante a caminhada.

A acupuntura possível do bordado da fotografia — quer seja de uma paisagem da cidade como foi nessa experiência, ou quer seja de outras circunstâncias e memórias vividas e guardadas — é um reverberar de energia, uma recolocação e reordenação de tempo e espaço interior diante da circunstância da vida e da realidade. Uma forma de transver um pedacinho do mundo a partir da imaginação e do ato de fazer criativo.

Bordar a cidade com esse grupo foi mais uma experiência de aprendizado e de reordenação para mim, na arte e na educação. Andar pela cidade, desde outubro, não tem sido mais a mesma coisa para mim, e a acupuntura desse dia segue reverberando na minha presença, na minha forma de educar e, principalmente na minha interação com a complexidade que a cidade é.

Alguns bordados produzidos pelos participantes da oficina.

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PARA SABER MAIS:

Quer organizar uma experiência de bordado comigo, para um pequeno grupo ou para você? Escreve para mim! Vou adorar.

Conheça o trabalho do Estudio Ceda el Paso — um projeto incrível voltado à caminhada e à antropologia urbana, comandado pela Jessica e pelo Ricardo, para uma melhor relação com a cidade: https://www.instagram.com/estudio_cedaelpaso/

O livro de David Le Breton, que foi lido e estudado lentamente em parceria com a Adriana Costa , da em 2023: Residência criativa

BRETON, David Le — Antropologia dos Sentidos. Petrópolis, Ed. Vozes, 2016.

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