O sonho, a energia vital e o autorretrato: quem é você quando você se vê?

Todo carnaval tem seu fim.

E findado o tempo das máscaras e das fantasias, quero pensar sobre uma pergunta bem típica de ano novo:

“quem é você quando você se vê?”

Ao longo do mês de janeiro, realizei com minhas amigas e parceiras uma sequência de experiências de bordado em fotografia, com mulheres maduras da periferia de São Paulo. Nessas experiências, elas foram fotografadas, em gestos que pudessem de alguma maneira representar seus sonhos. E depois... bordaram-se.

O convite era: Que tal um retrato que represente seu sonho e que você possa bordar depois?

Você consegue imaginar quantas camadas podem ter implícitas num convite como esse?

  • Primeiro, aceitar ser fotografada por uma profissional da fotografia.

  • Nessa foto, deve estar um gesto da sua intimidade – seu sonho.

  • Depois, olhar para você mesma materializada no papel fotográfico, naquele gesto que representaria sua intimidade em um nível simbólico.

  • E então, recriar camadas de símbolos, furar(-se), costurar(-se), sem deixar de contemplar cada detalhe, cada parte do corpo, o que se vê e também as marcas mais íntimas que só você mesma sabe que tem e contam sua história na imagem...

    Pois é! Eu poderia escrever um longo texto sobre cada uma das camadas e sobre tudo o que aprendi com as mulheres que aceitaram esse desafio. Mas, vou me deter em um único aspecto – o ver a si mesma e os efeitos disso no bordado de si.

Dona Ana e seu sonho de mobilidade - vontade de andar mais, com mais facilidade. E sua leveza no ar…

Rick Rubin é autor de um livro chamado “O ato criativo: uma forma de ser”. Esse livro tem capítulos curtos que são pequenas pérolas sobre o processo criativo e tudo o que ele reverbera no sujeito que se coloca em processo. Em um dos capítulos, chamado “olhe para dentro”, ele chama a atenção para a quantidade de estímulos externos que nos captura o tempo todo, pelos nossos sentidos – a brisa, os diferentes cantos de pássaros, barulhos de carros, nosso senso de orientação para não nos perdermos na rua... Mas na sequência, ele reflete:

“É comum acreditar que a vida é uma série de experiências externas. E que precisamos de uma vida externamente extraordinária para ter algo a compartilhar. Em geral, a experiência de nosso mundo interior é ignorada por completo. Se nos concentrarmos no que acontece dentro de nós – sensações, emoções, padrões de pensamento -, vamos encontrar um tesouro de material. Nosso mundo interior é tão interessante, belo e surpreendente quanto a própria natureza. Afinal de contas, nasceu dela. Quando vamos para dentro, processamos o que acontece do lado de fora. Não estamos mais separados. Estamos conectados. Somos um só.”

Para poder olhar para dentro, é essencial sair do tempo Kronos (cronológico), e entrar um pouco no tempo Kairós (o tempo oportuno). É preciso parar. Contemplar, sem máscara, sem medo, cada traço que diz que somos quem somos, do jeito que estamos agora.

A possibilidade que essa experiência gerou para o grupo de mulheres foi, para muitas delas, de reconciliação com suas histórias de vida e com suas marcas de pele, de corpo, a percepção de que há sonhos já realizados ou, então, a lembrança daqueles outros sonhos que alimentam diariamente a energia vital, a anima de cada uma delas.

Quantas renúncias , quantas escolhas livres, quantos caminhos mudados ou reafirmados podem estar marcados num retrato seu? Quantas imposições ideológicas de beleza precisam ser desfeitas quando olhamos profundamente para dentro de nós mesmas e nos reconhecemos como parte de uma Grande Natureza, como diz Rubin? Quanto tempo leva nessa contemplação para que cheguemos ao ponto de nos reconhecer como uma só Natureza, conectada e integrada, para além de todos os filtros de TikTok, instagram, e outros tantos que camuflam, enchem de ruídos e nos separam do íntimo de nós e dos nossos sonhos?

Dona Regina e seu bordado que iniciou pelos olhos - poder perceber o quanto os próprios olhos são bonitos, foi uma revelação para ela.

Quando eu digo que poderia escrever sobre cada uma das camadas dessa experiência, realmente estou falando sério. Para cada etapa, um universo de sensações e reflexões se abriu, e os processos criativos são assim mesmo quando a gente os vive plenamente.

Mas se escolho só esta etapa para esse momento, é talvez porque realmente o Carnaval chegou ao fim, e vamos guardar nossas máscaras e enfeites, e seguir com a vida a partir de hoje. Talvez, então, para lembrar que a vida, sem máscara alguma, tem uma beleza extraordinária e produzida dia a dia, luta a luta, sonho a sonho... É na vida sem máscaras que a energia vital que carregamos no nosso íntimo encontra sua porta de saída e se revela como presença.

Seja bem-vindo, ano novo.

E que a gente possa se orgulhar de cada pedacinho de nós que levanta a cada dia e segue com sua rotina.

Às mulheres de Parelheiros e do Jardim São Luis, meu mais profundo agradecimento pelas presenças amorosas e delicadas.

Esse projeto ainda vai ter muito o que dizer, afinal, o ano está só começando hoje.

A exposição “Sonhe como uma Garota", que terá, entre outras obras, algumas fotos do processo vivido pelas mulheres e seus bordados, abre no próximo dia 08 de março, na Biblioteca do Parque Villa-Lobos, em São Paulo, e segue até o dia 31/03, com entrada gratuita.

As fotos são da Barbara Otero, que é responsável por todas as fotografias do projeto.

O livro que comentei no post é: “O Ato criativo: Uma forma de Ser", do produtor musical Rick Rubin. Editora Sextante.

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Bordar a cidade - um exercício de acupuntura criativa com agulha e linha.