Sobre amar as próprias perguntas e voar pelas mãos - lições de um fazer manual.

Rainer Maria Rilke, em seu livro de cartas a um jovem poeta, tem uma passagem belíssima, em que ele procura de alguma maneira acalmar o jovem Kappus, seu interlocutor, que talvez pela própria pressa da juventude, tem o anseio de resolver suas preocupações com a vida. Assim diz ele:

"O senhor é tão moço, tão aquém de todo começar, que lhe rogo, como melhor posso, ter paciência com tudo o que há para resolver em seu coração e procurar amar as próprias perguntas como quartos fechados ou livros escritos num idioma muito estrangeiro. Não busque por enquanto respostas que não lhe podem ser dadas, porque não as poderia viver. Pois trata-se precisamente de viver tudo.

Viva por enquanto as perguntas. Talvez depois, aos poucos, sem que o perceba, num dia longínquo, consiga viver a resposta. Quiçá carregue em si a possibilidade de criar e moldar - como uma maneira de ser particularmente feliz e pura." (p. 38)

Conseguir viver as próprias perguntas exige de nós uma presença no presente; uma disponibilidade para não apressar o futuro, e conseguir permanecer nas dúvidas. Nesse aspecto, os processos criativos são muito importantes, porque geralmente, a sensação que temos quando estamos criando algo, é que vão aparecendo camadas e mais camadas de novas percepções, que parecem não se fechar em conclusões com facilidade. Isso angustia às vezes. Queremos falar do que estamos aprendendo, queremos resolver nossos dilemas na materialidade que estamos criando.

Mas Rilke diz ainda que devemos aceitar o que vier com toda a confiança; e aceitar que quase tudo o que é grave é difícil, ao mesmo tempo em que tudo o que nos mexe por dentro é grave. Grave porque nos puxa ao centro das coisas que realmente importam, que são parte do nosso princípio de existência.

Quando destaquei a fotografia entre as muitas possibilidades de linguagem possíveis para me ajudar a “transver” o mundo à minha volta, certamente eu tinha muitas perguntas dentro de mim, e buscar símbolos na realidade e registrá-los pela imagem, contribuiu demais com esse processo de ordenação interior.

Aos poucos, fui elaborando essas primeiras perguntas e fui encontrando nas minhas camadas mais profundas, outras novas perguntas, e fui sendo levada para outras formas de trabalhar a fotografia. Experimentei alguns processos artesanais, e para cada um deles, minhas perguntas foram se reformulando no próprio fazer, para além do pensar.

Com o tempo, passei a organizar ateliês em grupo e também individuais, para colocar outras pessoas em processo criativo, usando principalmente a linguagem do bordado na fotografia. Foram encontros temáticos de poesia e bordado; oficina de autorretrato; encontros com misturas de técnicas, e também vários com temas livres, especialmente os individuais.

E nos ateliês fui percebendo que o que havia à minha frente era uma outra possibilidade ainda – pela condução da experiência da memória simbólica, do fio, da agulha e da costura sobre a imagem, eu conseguia me aproximar de camadas mais profundas das pessoas que sequer eu conhecia, e isso me aproximava de alguma maneira do sentido de suas vidas. Muitas pessoas compartilharam comigo suas intimidades de sentido e princípio, a ponto de me levarem  a me interessar por estudar mais profundamente a Logoterapia de Viktor Frankl, a Terapia do Sentido, como uma especialização mesmo, e assim o fiz entre 2022 e 2023.

Muitas vezes, me vejo dizendo essa frase de Rilke nos encontros: “tenha paciência com suas perguntas”, assim como “tenha paciência com a agulha, com a linha”. A ideia de sempre trazer a atenção para o presente, para o momento do fazer, e poder desligar o celular e as preocupações com o futuro, é uma forma de encontrar-se consigo mesmo, com a confiança necessária para aceitar a vida.

Num dos meus exercícios pessoais de pesquisa sobre o bordado, escolhi bordar as cores de um pôr do sol. Escrevi também uma reflexão sobre isso, e você pode ler aqui. Mas, aquele exercício foi marcante porque invertia o próprio processo da fotografia de alguma maneira – usei a imagem impressa no papel para aprimorar a maneira como eu precisava olhar para a realidade. O exercício de buscar as tonalidades mais próximas do céu me ensinou que eu não parava tempo suficiente para observar as coisas em si mesmas, e também que não há na materialidade humana, recursos suficientes para representar a realidade. Faltaram cores de linhas para alcançar o real daquele céu. Viver isso foi muito importante para eu carregar comigo como uma forma de aprimorar, por exemplo, meu olhar sobre meus alunos na escola. Nem sempre as cores que tenho na vida são suficientes para compreender totalmente a paisagem que se abre à minha frente. É preciso, então, parar e ter mais tempo, alimentando as perguntas e a gravidade que as situações exigem. Mas é fundamental dizer também que não pensei nada disso antes de fazer o bordado, e muitas coisas só vieram à mente depois de terminado aquele processo. O fazer novamente se sobrepôs ao pensar naquele momento.

Num ensaio sobre os pássaros escrito por Vilém Flusser no seu livro “Natural:mente”, ele diz que, assim como os pássaros têm asas, os humanos têm mãos. E suas mãos podem ser suas asas, para ir além do previsto e ocupar os espaços tridimensionalmente. Numa das vezes em que li esse ensaio, escrevi essa pequena reflexão:

Pensar nas mãos como símbolos do estar-no-mundo, ser presente, movimentar-se para fora do próprio limite corporal; tocar o outro, tocar com delicadeza no mundo e nas suas sutilezas, aprendendo sobre a complexidade que é a realidade em si, num exercício de fortalecimento espiritual, que distribui o peso da coluna e reparte com as mãos a responsabilidade de estar viva, presente e íntegra...

Voar como um pássaro é fazer as mãos percorrerem o céu tridimensional da realidade, lançando-me para fora de mim mesma ao encontro do mundo...

Parece milagre viver isso só costurando uma fotografia? Pode ser. Mas convido você a experimentar, e quem sabe, depois, se debruçar sobre sua própria narrativa de perguntas e sentidos para sua vida.

Escreve para mim. Vou adorar te acompanhar nessa jornada:

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