"Dias Perfeitos” e os "komorebi” que nos guiam pela vida.

Wim Wenders é o diretor do filme “Dias Perfeitos”, uma obra que se passa no cotidiano de Tóquio e que mergulha no cotidiano de Hirayama, o limpador de banheiros silencioso e atento ao presente. O longa nasceu de um convite feito ao diretor para que ele fizesse inicialmente cinco curtas-metragens, que valorizassem a arquitetura dos banheiros públicos de Tóquio, construídos em 2020.

Wenders, então, optou por criar uma história única, que valorizasse não só os ambientes, mas também as pessoas que se dedicam a mantê-los limpos. Numa visita dele ao Japão, para as pesquisas de locação do filme, após o período da pandemia, observou o que considerava uma sociedade se refazendo de forma gentil e delicada ao período do isolamento social e dos sofrimentos gerados pelos dois anos da doença. Junte-se a isso, a sua relação de profunda admiração pelo cinema japonês através de seu mestre, Yazujiro Ozu (1903-1963), que tinha como proposta o retrato do cotidiano japonês antes, durante e depois da Segunda Guerra, mostrando nos detalhes a corrosão dos valores tradicionais e as mudanças da sociedade. E assim ele criou a história de Hirayama, o limpador de banheiros que vemos no filme. O filme me pegou em vários sentidos, e é um pouco disso que quero falar.

Quando o poeta Matsuo Bashô criou a estética haicai, ainda no século 16, o Japão vivia um momento de prosperidade. Havia paz interna ao mesmo tempo em que as cidades começavam a se desenvolver. O haicai nasce, então, como um exercício de observação atenta às minúcias da realidade, e Bashô que era um viajante, parava pelas estradas para contemplar a natureza que via, e dali saíam seus poemas que à primeira vista, parecem extremamente simples e prosaicos, mas que, olhando mais de perto, mostram-nos uma profunda atenção às coisas que passariam despercebidas à grande maioria das pessoas, como o salto de uma rã num lago, por exemplo. É preciso total conexão com o presente e com o instante, para eternizar em um poema o salto de uma rã no lago.

Ao assistir “Perfect Days” me vi muitas vezes dentro de um haicai, pelos olhos de Hirayama e pelas lentes de Wim Wenders. Uma Tóquio contemporânea, cheia de elementos visuais por toda a parte, mas que ao acompanharmos o olhar profundamente silencioso do personagem pelo recurso de câmera de Wenders, vamos deixando a grande angular, para chegarmos cada vez mais perto e mais próximo do detalhe mais simples e mais significativo do dia, a ponto de virar um poema visual. É assim, por exemplo, as cenas em que Hirayama cuidadosamente limpa os banheiros públicos do distrito de Shibuya em Tóquio. Ficamos encantados com a maneira como ele se dedica ao seu cotidiano, à limpeza dos banheiros, como uma provocação e contraposição ao universo do trabalho que conhecemos bem no Ocidente, e que desvaloriza certas profissões.

A limpeza é um tema importante na narrativa, e perpassa tanto a forma gentil e atenta como o personagem limpa os banheiros públicos da cidade, quanto os momentos em que ele se dedica à própria limpeza, em uma casa de banho. São cenas muito bonitas e simbólicas do ato de cuidar e de cuidar-se.

Aos poucos vamos sendo apresentados a essa pessoa, pela forma como lida com seu trabalho e com seu descanso. Vive sozinho; gosta de ouvir músicas e tem uma coleção de fitas cassete; gosta de ler; e tem ainda o hábito de fotografar todos os dias o que os japoneses chamam de “komorebi”, a beleza da combinação de raios de luz e sombras dançantes provocada pela passagem do sol pelas folhas de uma árvore que farfalham por causa do vento. 

Não é qualquer música que ele escuta, porque sempre escolhe a fita que vai colocar para tocar, antes de dar a partida no seu carro e seguir para o trabalho. E a primeira música que ouvimos é “House of the Rising Sun", da banda de rock inglesa dos anos 60, Animals.

Não é qualquer livro que ele lê também. Somos apresentados a duas de suas leituras - William Faulkner (“Palmeiras Selvagens") e depois Patricia Highsmith (e seu livro de contos “Eleven", e depois “The Tree”). Quem já viu outros filmes de Wim Wenders, sabe que suas escolhas musicais e as referências que inclui nos seus filmes não são aleatórias, mas dão-nos pistas sobre uma história que está em camadas um pouco mais profundas, para além do que nossos olhos conseguem acompanhar pelo filme.

E ainda, não é qualquer fotografia que ele tira: são os komorebi de uma mesma árvore, num mesmo parque, no mesmo horário, diariamente, com sua câmera analógica.

É também pelos sonhos que ele tem enquanto dorme, que vamos descobrindo um pouco como sua mente lida com a vida que leva. Sonhos em preto e branco, que reproduzem o komorebi que procura todos os dias, além das pessoas com quem cruza pelo seu caminho. Quando dormimos bem, os sonhos são fundamentais para regenerar e ordenar as memórias que vamos guardar, assim como restaurar o cérebro sobre o que não precisamos lembrar. Isso vai nos mostrando que Hirayama tem no jogo de luz e sombra mais do que um olhar fotográfico, mas um símbolo de movimento da vida, que não nos é trazido para além disso, mas que deixa pistas de que nem só de instantes do presente e da rotina de trabalho vive o nosso personagem.

Ao longo da narrativa, ele interage com algumas pessoas, principalmente jovens, mas também algumas pessoas mais velhas, que são seus amigos, sob alguns aspectos. Mas são pessoas com histórias de questionamento da vida que levam, de alguma maneira – o jovem que só quer um dinheiro para sair com a namorada e não entende a dedicação de Hirayama ao trabalho; a namorada do jovem, que se encanta com a música de Patti Smith sobre um “doce suicídio” e a saudade que ficou em quem viu essa morte acontecer; a sobrinha dele que não se entende com sua mãe e que busca uma vida outra que não sabe bem qual é; ou ainda o ex-marido de sua amiga dona do restaurante, que ao descobrir ter um câncer, pede a Nirayama que cuide de sua ex-esposa. 

Essas pessoas passam por ele, há uma interação no momento, mas elas se vão. E ele segue, como se não ficassem guardadas em lugar algum, a não ser nos seus sonhos, enquanto dorme à noite. 

É só no encontro com a sua irmã, que aparece para buscar a filha que fugiu de casa e se esconde na casa do tio, que nos deparamos com uma tristeza e um choro dele, depois de decidir não ir ao encontro de alguém que a irmã diz estar nos últimos dias de vida, porque “já não reconhece mais ninguém”.

Acho que esse é um momento muito importante do filme, uma chave para a narrativa e para a escolha dos valores que Wim Wenders quer trazer para a história. No dia seguinte ao encontro com a irmã, já sozinho em casa de novo e sem a sobrinha, é o único momento em que ouvimos a música-título do filme “Perfect Days”, de Lou Reed, num volume alto, e com o personagem deitado no chão, fluindo a música por inteiro, sem o corte de uma música tocada em trânsito.

É curiosa e um tanto irônica essa cena, porque Hirayama deixou uma história para trás e sofre por isso, mas escolhe seu presente, escolhe sua vida solitária, considera talvez esse um dia perfeito, a reafirmação de suas escolhas. Abre a janela, deixa entrar a luz do sol em seu rosto e ouve a música.

Para quem viu “Asas do Desejo”, um clássico do diretor, produzido em 1987, percebe que há lá muita melancolia diante de um mundo em ruínas naquela Alemanha dividida, mas ainda assim, o anjo Damiel decide se tornar um humano, para experimentar as dúvidas, os sabores e os dissabores, encontrar-se com a morte inevitável, e entrar na história dos homens, deixando a eternidade.

É interessante que nesse filme de agora, Wenders tenha esse personagem com essa relação tão íntima com o cotidiano, mas ao mesmo tempo tão distante das relações duradouras, transformando uma vida de rotina que poderia parecer maçante e tediosa a muitas pessoas do nosso tempo, em “dias perfeitos”. 

Uma das perguntas sobre Hirayama é: até que ponto ele é um espectador da realidade? Até que ponto é espectador da própria vida? 

Assim como o anjo de 1987, esse personagem escolhe o sabor do cotidiano. Mas não sei se é possível viver uma vida em que as luzes a as sombras não estejam em movimento permanente. Como já nos ensinava o escritor japonês Junichiro Tanizaki, no início do século 20 com seu livro “Em louvor da sombra”, a beleza inexiste na matéria em si. Ela é sempre resultado de um jogo de projeções de luz e sombra sobre ela. 

 Talvez essa seja a pista que Hirayama nos dá através dos seus sonhos. 

Entendo que o haicai é uma forma de fazer poesia de fora para dentro – da observação radical da realidade, sem julgamentos e sem ser levado pelo lirismo pessoal. Mas, diferentemente do contexto de Bashô, que vivia um momento de prosperidade e paz, Hirayama sabe que a Tóquio em que vive, tem pessoas mergulhadas em dores e sofrimentos. Não deixa de ver isso, mas toma distância delas em nome de manter-se vivo.

É isso que seus sonhos noturnos insistem em trazer de volta: suas memórias embaçadas e misturadas de luzes e sombras retornam, provando que não podem ser esquecidas em nome dos instantes. Existe um mistério em Hirayama; um mistério que nos é contado somente em partes, mas que nos coloca a refletir sobre a profundidade oceânica que todo indivíduo guarda em si, e que não podemos alcançar sem que ele nos abra suas portas de alguma maneira.

Estar na vida é de alguma maneira responder à vida. Fazer aquilo que ninguém mais pode fazer no seu lugar. O presente é o tempo e o espaço de darmos essas respostas realmente. Mas, sabemos que nossas decisões, embora só caibam a nós mesmos, não param em nós. E transformam o passado em tesouro guardado na memória. Viktor Frankl sempre destacava os sentidos de nossas ações como únicos e irrepetíveis, como marcas indeléveis de nossa presença no mundo, e a importância de que cada ação seja parte do tesouro das memórias:

“Na verdade, as oportunidades de agir de modo apropriado, as potencialidades para realizar um sentido são afetadas pela irreversibilidade das nossas vidas. Mas também as potencialidades isoladamente são afetadas por esse fato. Porque tão logo usamos uma oportunidade e realizamos um sentido potencial, isso está feito de uma vez por todas. Já o salvamos para o passado, onde foi entregue e depositado em segurança. No passado, nada fica irremediavelmente perdido, mas, ao contrário, tudo é irreversivelmente estocado e entesourado. Sem dúvida, as pessoas tendem a ver somente os campos desnudos da transitoriedade, mas ignoram e esquecem os celeiros repletos do passado, em que mantêm guardada a colheita das suas vidas: as ações feitas, os amores amados e, não menos importantes, os sofrimentos enfrentados com coragem e dignidade.” (p. 172)

A minha sensação ao terminar ao filme, é de que realmente não cheguei a conhecer Hirayama verdadeiramente. Mas as pistas de sua existência para além da sua rotina delicada e sempre em busca de um novo dia, uma nova história como mostra a canção de Nina Simone na última cena, me deixaram com a sensação de que é assim mesmo que se dão as aproximações reais na vida.


É preciso tempo, delicadeza, paciência e muita prudência para chegar à profundidade possível da alma das pessoas e nos encontrar com elas. Aprender com seus silêncios, seus gestos, suas pequenas pistas e aceitar o pequeno universo aparente entre muitas possibilidades não desveladas.

“Perfect Days” foi um experiência de exercício de anamnese, e me ajudou muito a pensar que sempre há camadas mais profundas além da aparência do que nos salta aos olhos. É preciso buscar os komorebi da paisagem. Insistir diariamente em busca dos movimentos sutis que alteram a paisagem de maneira tão delicada , que é preciso sempre uma atenção que se encanta com a permanência da rotina e as transformações de cada instante.


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