Mundos pessoais, centros de gravitação nas relações e educação… umas reflexões sobre o começo do ano.

Você já parou para pensar quais são os centros de gravitação onde giram as suas relações com as pessoas à sua volta?

O filósofo espanhol Julian Marías, em seu livro “Mapa do Mundo Pessoal”, separa um dos capítulos para essa reflexão, e vou recorrer à sua ajuda para pensar. Assim diz ele:

“Uma enorme parte da humanidade, por longos períodos de sua história, viveu em mundos muito limitados. O aumento da população foi vertiginoso na Europa nos últimos dois séculos, e veio acelerando até poucos anos atrás.

(...) Os mundos limitados não eram integralmente pessoais, mas raramente eram impessoais, como passou a acontecer depois. Diríamos que eram mais prováveis as relações entre as pessoas, entre outros motivos porque seu mundo era muito reduzido, e era provável que a atenção se concentrasse. (...)

Acresça-se a isso que em tais mundos, a presença dos outros era quase sempre ‘real’, corporal até. Em nossa época isso foi substituído numa proporção incrível pela imagem ou pela mera menção. O homem urbano do nosso tempo conhece inúmeros nomes de pessoas que nunca viu, ao passo que ignora os nomes daquelas que vê na rua, nos locais de trabalho, nos espetáculos. A isso é preciso acrescentar as vozes descarnadas do rádio, as presenças em imagem e voz da televisão.

Esse tipo de relações não está limitado a um círculo reduzido de convivência efetiva, mas se estende para âmbitos muitíssimo amplos, que não têm relação direta entre si, e desse modo se estabelecem estranhas ‘comunidades’ que nunca existiram, com um curioso coeficiente de irrealidade.” (p. 116)

É importante dizer que esse livro foi escrito em 1993, e se naquela época não contávamos com a vida mediada pelas redes sociais, essa realidade só se adensou no tempo.

A forma de colocar o problema das relações que Marías estabelece está, na verdade, ligada a uma outra defesa dele sobre a maneira como o mundo da convivência humana se distingue em níveis ou “centros de gravitação” assim entendidos:

·      o mundo da convivência social - generalizado entre pessoas que se cruzam rapidamente pela vida, e que diz respeito à maioria dos momentos de muitos de nós;

·   a convivência psíquica ou de trato interindividual sem efetiva intimidade, ou seja, os bate-papos descompromissados; e eu incluiria aqui as curtidas nas redes sociais dos amigos; aquelas conversas com conhecidos que não avançam além de um passatempo.

·      o mundo pessoal em sentido estrito – a conversa demorada; a preocupação real com a vida de alguém, que demanda uma outra energia de cuidado e delicadeza no trato.

Aí vem a minha pergunta: e nas relações educativas? Como se desenham as relações  nesse contexto?

Bem, acredito que a educação é um encontro em sua essência. Um encontro de mundos instalados em mundos pessoais. “Instalação” é também um conceito desse mesmo filósofo espanhol, e significa de maneira muito simplificada “a estrutura em que o sujeito está”, o mundo pessoal do sujeito. Portanto, um encontro de mundos pessoais que se cruzam no mundo comum da escola ou da vida.

Há o educador, que está instalado numa estrutura de mundo de valores, de compreensão da vida, de escolha pessoal em estar nesse papel; e há o educando, instalado num mundo de compreensões próprias sobre o que é a realidade também, e dentro de seus sistemas adquiridos de valores.

É preciso partir de um centro de gravitação para que haja o encontro educativo. E podemos pensar que os processos educativos, já que se tratam de verdadeiros encontros, precisam ser levados a girar, então,  sobre um eixo comum gravitacional para que o processo criativo e a expansão de consciência sobre a realidade possa acontecer, senão o encontro corre o risco de não acontecer.

Se estivermos centrados sobre nós mesmos, como educadores, nas nossas metas, nos nossos objetivos de aprendizagem, nos nossos próprios recursos internos afetivos ou racionais, nós, nós, nós... acontecerá o que Ortega y Gasset chamava de “pessoas chocas”: chocando nossos próprios mundos, sem a abertura para a realidade que está à frente. O encontro educativo não é capaz de acontecer assim, desculpe.

Se estivermos nos movendo no âmbito da relação privada, mas tomando a distância da pessoa que está à nossa frente, vendo-a somente como alguém que está aprendendo algo conosco, nos entregando tarefas e demonstrando seus conhecimentos adquiridos da relação, estaremos voltados a uma parte da relação, a parte que só vê, e confunde o que vê com a totalidade das coisas. Talvez o encontro educativo  até aconteça assim, mas o mais provável é que o encontro seja só uma prosa leve no meio do caminho que dividimos, e depois, cada um irá seguir seu caminho e outros virão, até que as memórias sejam de grupos, de coletivos, mas muito poucas memórias de pessoas que nos marcaram e que marcamos como um verdadeiro encontro pessoal pode fazer.

Por isso, se estivermos fazendo o centro da gravitação da relação educativa no mundo pessoal, aí poderemos nos envolver com o processo educativo como um todo. O centro gravitacional das relações pessoais envolve generosidade e imaginação – é preciso ver além da corporeidade, do social e dos atos que estão sob nossos olhos no instante presente, diz Marías. Temos, então, a possibilidade de “transmigração imaginativa”, de ver o outro como o que ele pode ser e não apenas como é e nem só pelas habilidades cognitivas conquistadas. Podemos ver também o outro como ele é na sua inteireza, mesmo que isso escape às minhas possibilidades reais de compreensão (e por isso o termo “imaginação), deixando-me imaginar sobre sua realidade que escapa à minha compreensão, porque assumo que meu tempo de convivência real é pequeno para apreender sobre sua realidade infinita.

No caso de educador e educando - uma relação desigual por natureza - a relação pessoal se estabelece pela busca da Verdade. A intimidade não é feita de amizade entre pessoas iguais, mas sim da busca permanente da Verdade que mora nos processos educativos.

Mas não é uma tarefa fácil, se tomarmos o início dessa reflexão como ponto de partida. Se estamos imersos em relações que mais desviam nossa atenção e que nos confundem pelas imagens do que pelas relações pessoais e atentas, o problema da aproximação real se torna difícil de resolver.

É uma questão de tempo, de persistência e de consciencialização sobre o que se procura no encontro educativo. Se renuncio a estar centrada em mim mesma, se também quero mais que uma relação formal, em que só olho para as habilidades cognitivas dos conteúdos que quero que o sujeito aprenda, bem, então preciso de tempo para traçar esse caminho mais pessoal.

Preciso de registros, de perguntas a serem respondidas no dia-a-dia dos encontros (perguntas tanto sobre minhas condutas quanto sobre as condutas do outro); preciso me livrar das certezas de que o que eu sei sobre o outro é o todo sobre ele; preciso também ter generosidade – a verdadeira generosidade que me coloca em um lugar de desigualdade diante dele. A minha responsabilidade em ser generosa vem da Verdade que busco e que mora no meu educando.

Parafraseando Drummond, é preciso chegar mais perto e contemplar as palavras, mas também os silêncios e gestos que compõem a realidade de que o outro é feito. É preciso fundar centros gravitacionais pessoais para que os encontros verdadeiros aconteçam. É preciso transver o cotidiano. E confiar na verdade.

Paciência, persistência e generosidade com o outro.  E há de ser um bom ano.

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