O fio de Ariadne do processo criativo - o registro da memória.

O psiquiatra Viktor Frankl tem uma reflexão sobre a tempo e a memória, que diz assim:

"O tempo flui, mas o acontecimento se coagula em forma de história. Nada que aconteceu pode ser desfeito. Nada que foi criado pode ser exterminado. (…) Quer realizemos o que chamamos de 'valores criadores', quer realizemos o que designamos de valores vivenciais, salvamos sempre alguma coisa no passado; no caso dos valores criadores, salvamos a nossa interioridade na realidade exterior; no caso dos valores vivenciais, a realidade exterior dentro da nossa interioridade." ("O Sofrimento Humano", pág. 200).

Se pensarmos a relação entre tempo e memória no processo criativo partir dessa reflexão de Frankl, vamos acabar reconhecendo que o percurso da criação vai gerar não só dificuldades e dúvidas, mas acima de tudo, outras obras, que vão compor o mosaico do produto final. E poder ter essa memória registrada vai dar a densidade da interioridade, como um valor vivencial; e do material produzido pela nossa interioridade, como um valor criador no mundo externo.

Se você assistiu à animação "Pinóquio", de Guillermo Del Toro (Netflix, 2022), pode ter tido uma perspectiva da narrativa, e da maneira como ele quis contar a história, que é um clássico da literatura. Mas se você assistiu ao documentário sobre o processo criativo da obra, com as entrevistas, a forma de elaboração dos bonecos, as escolhas de cores e roupas para cada bonequinho… enfim! Naquele documentário, a obra final passa a ser outra. O processo em si se torna uma grande obra. No caso dele, o registro foi também em audiovisual, e eu fiquei muito impactada em ver esse outro lado do filme.

E no seu caso? Como você registra seus processos?

O que se vive e o que se cria se coagula em forma de história, como diz Frankl, mas precisa de uma curadoria intencional, para que não se perca.

Na mentoria, esse registro não se perde. Para nós, todo o processo é a obra, porque é um processo de amadurecimento interior, de idas e vindas, de evolvimento, que reflete as tensões, os costumes enraizados, e também os momentos em que a imaginação conseguiu se transformar em ato, de alguma maneira. E não são poucos esses momentos, embora ao notar uma obra pronta, muitas vezes as pessoas consideram tudo como uma perfeição de talento e genialidade.

Quando tomamos por essencial o registro do processo na mentoria, estamos apostando na educação verdadeira que o movimento de criar significa. E mais ainda! Estamos também numa pesquisa sobre diferentes formas de abordar os sentidos apreendidos na criação. Fotografias; mapas mentais; documentos co-criados e salvos com acesso permanente pela dupla mentor e mentorando; cartas; sobrevoos ao processo em alguns momentos, e foco no detalhe em outros, para ajudar a ver melhor o que se está elaborando… tudo isso são ferramentas.

Mas em qualquer uma delas, o que está em jogo é a atenção. E atenção é a mais pura forma de generosidade que existe, como disse Simone Weil. Não é um registro sobre a forma como se ensina, mas sim sobre a forma como o outro aprende e entra em contato com a própria interioridade. É isso que importa, e é isso que nos torna o fio de Ariadne, nesse grande labirinto pessoal, que é o processo criativo.


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