Orides Fontela e a atenção às estranhezas de todos nós.
Num dos passeios pelas redes sociais nesses dias, me deparei com esse poema de Orides Fontela, a poeta paulista, de São João da Boa Vista, e que faleceu aos 58 anos em 1998.
Se vens a uma terra estranha
curva-te
se este lugar é esquisito
curva-te
se o dia é todo estranheza
submete-te
– és infinitamente mais estranho.
(Orides Fontela)
Como venho pensando bastante no tema da atenção, no quanto de atenção prestamos às coisas, esse poema foi direto para o meu coração e para cá, nessas linhas.
Já escrevi aqui há poucas semanas sobre o tema da atenção. Volto nele hoje, sob a luz desse poema, porque ilustra bastante uma reflexão sobre a forma como nos relacionamos com o que está à nossa volta, e a perspectiva sob a qual apreendemos a realidade.
Quando você olha para alguém, o quanto você realmente sabe dessa pessoa? As pessoas, os lugares, o período de um dia, tudo está em contexto, ou para dizer de uma maneira mais filosófica, são dados ou limites da nossa existência. Tudo foi-nos colocado, de alguma maneira, e não podemos prescindir desses limites. As pessoas cruzam nossos caminhos, estamos em passagem ou alocados em determinados lugares, ou o tempo de um dia é exatamente o tempo que temos para as coisas que fazemos no cotidiano. A nós cabe estar nos lugares e nos movimentar nas relações.
Acho que o poema de Orides Fontela, cujo nome é "Iniciação" é, de fato, um bom começo para prestarmos atenção às coisas. Jamais conseguimos apreender de uma coisa a sua totalidade. Tudo sempre transcende a nossa compreensão imediata. E no entanto, à nossa frente estão pessoas e situações, e nós estamos sempre em movimento no emaranhado de dados que compõem a nossa vida. Muitas vezes a estranheza é exatamente a nossa impotência de compreensão para além dos sentidos no momento em que estamos vivendo a experiência.
Então, a atenção não é um gesto de domínio da situação, mas de abertura a ela. Abertura a esse universo de coisas que nos foram postas e que esperam de nós, de alguma maneira, que possamos responder a elas com gestos e linguagem. Se tudo me parecer estranho, assustador ou difícil, mais difícil ainda se tornará a transposição da barreira que me separa do mundo. Mas quando eu me abro e me disponho a ver, ouvir, tocar e estabelecer contato, inicio possibilidades de narrativas, que não só diminuem a estranheza do mundo para mim, como também me aproximam da realidade tal como ela verdadeiramente é, e não só tal como existe na minha imaginação.
Penso que a estranheza da qual fala Orides é um pouco sobre o tanto que nós mesmos temos dificuldades em nos reconhecer no meio de tantas coisas que parecem não combinar nem um pouco com a vida que sonhamos levar. Mas o gesto da atenção, assim como a vontade de responder positivamente à realidade, são maneiras generosas de tornar o mundo mais familiar e a realidade um tanto mais possível de ser compreendida.
Curvar-se ao que nos parece estranho significa exercitar um gesto de humildade de responder à vida na linguagem que ela estabelece para nós — tempo, espaço e sujeitos simultâneos gerando significados à nossa existência, e nos tirando da nossa própria estranheza. Enquanto nos movimentamos em direção aos outros, os outros também se movem nas suas estranhezas e nas tentativas de responder às suas vidas, com suas dificuldades, muitas vezes em direção a nós. O quanto vamos saber se esses caminhos que se cruzam poderão se transformar em narrativas que se costuram com mais afinidade e menos estranheza, só poderemos saber mesmo com o correr do tempo e da vida, a partir do tanto de vontade e atenção que colocamos nela.