O ateliê como um espaço de “invenire”.

As práticas de ateliê são exercícios de fenomenologia. Um fenômeno é aquilo que aparece, e que se destaca aos sentidos, que podemos vivenciar. Quando falamos de um fenômeno, falamos de algo que vemos acontecer por si mesmo. A palavra deriva do grego “phainos”, que significa “vir à luz” e “manifestar”.

 

Isso para dizer que lidamos com a maneira como as coisas aparecem, através dos diferentes sentidos dos participantes de uma experiência de ateliê. Uns escutam mais, outros tateiam mais o ambiente, outros ainda sentem os aromas e se orientam melhor entre os materiais...

Mas dizer que a metodologia empregada no trabalho de ateliê é fenomenológica não significa, em hipótese alguma, dizer que tudo está entregue aos movimentos do grupo, sem que haja uma intenção clara do educador. Muito pelo contrário! Significa que a busca é pela atenção, não como um pré-requisito para o processo de aprendizagem e vivência, tal como se exige em processos formais de cognição, mas sim o próprio objeto de aprendizagem. É em busca da aprendizagem de uma forma de atenção que estamos, quando criamos uma ambiência de ateliê. É uma investigação dos caminhos por onde se alcança a presença atenta e por onde se processa a aprendizagem de fato.

Conceição Evaristo tem um poema lindíssimo, chamado “Da calma e do silêncio” e musicado no álbum de Marina íris, em que ela fala de “morder a palavra”, saborear o tutano dos verbos para “versejar o âmago das coisas”, sempre com um pedido e um alerta para que não a apressem, não a façam sair do seu estado meditativo. Esse poema maravilhoso, compassado de calma e sugestivo de silêncio, é uma das maneiras mais bonitas de se compreender o que estamos dizendo sobre a atenção como um objeto de aprendizado e não pré-condição para ele.

Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.

Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.

Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.

A professora de Psicologia da UFRJ, Virginia Kastrupp, tem uma reflexão sobre o verbo “inventar”, a partir da etimologia da palavra – “invenire”. Invenire é o mesmo radical latino para “inventar” e também para descobrir, e no seu artigo sobre a aprendizagem da atenção , Kastrupp traz uma reflexão importante:

 “Quando falamos em invenção recorremos a sua etimologia latina - Invenire – que significa compor com restos arqueológicos. Inventar é garimpar o que restava escondido, oculto, mas que, ao serem removidas as camadas históricas que o encobriam, revela-se como já estando lá.”

 

Nesse sentido, um ateliê que coloca os processos criativos em realização, seja pelo fazer manual, pela mordedura das palavras poéticas, pelos movimentos do corpo... pode trazer para fora de si o que já estava guardado como uma “virtualidade”, tal como diz Kastrupp, e que elaborada em companhia de um educador fenomenólogo, pode ganhar expressividade e presença, a partir das perguntas certas, das provocações adequadas, da disponibilização dos materiais necessários para a exploração e devaneio criativo.

“Há mundos submersos que só o silêncio da poesia penetra”, diz Evaristo em seu poema. Mas na prática do ateliê como um estado de presença, eu ainda parafrasearia nossa escritora, para dizer que há mundos submersos que o silêncio da poesia desperta, e esse despertar é o fenômeno matéria-prima que busca o atelierista.

Aprender com os sentidos, e fazer da atenção o objeto do estudo. É esse o caminho dessas experiências que parecem se reduzir a poucas horas de convívio, mas na verdade são processos que podem fazer chegar à compreensão de que, nas palavras de Kastrupp, “cada sessão, como de resto todo o aprendizado, assume a forma de um círculo. A lógica circular do aprender aponta para o inacabamento do processo, pois não há solução definitiva para o problema da atenção. O aprendizado jamais é concluído e cada sessão abre para um novo aprendizado. Ele [passa a ser] contínuo e permanente, não se fechando numa solução e não se totalizando em sua atuação, precisando por isso ser sempre reativado”.

 Conceição Evaristo pede sossego na sua possível inércia diante de uma pausa na caminhada. Observar o fenômeno requer essa sensibilidade de quem conduz uma experiência e vê à sua frente o ato criativo tomar forma e atenção se consolidar em presença, mesmo que em princípio pareça não estar acontecendo muitas coisas.

Para ler o artigo de Virginia Kastrupp - “A aprendizagem da atenção na cognição inventiva", é só clicar aqui!

Esse livro é resultado do Doutorado dela, em que faz uma investigação do processo de cognição e a partir de então, um caminho investigativo da atenção como objeto de estudo.


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