Poder, autoridade e “A Linha de Sombra” do amadurecimento - o que podemos aprender com Joseph Conrad.
Existe um certo conforto estranho no tédio. É o conforto do ambiente conhecido, das nossas tendências de comportamento conhecidas e repetidas, e o conforto de uma certa irresponsabilidade praticada, como se não devesse pertencer ao próprio indivíduo a vontade de girar a roda da própria vida, como se fosse possível dar a outrem essa responsabilidade, para depois queixar-se de não o ter conseguido. É uma atitude um tanto comum depositar numa possibilidade de aventura e prazer a ser conquistado a aniquilação do sentimento de tédio em si.
Acontece que a vida nos guarda sempre linhas de sombra. São os limiares que registram a vida para além das nossas projeções de aventuras. As linhas de sombra são parte da realidade que se instala à nossa frente quando temos um passo real a ser dado. Não é possível saber o que está no futuro, e é disso que se trata a penumbra.
O marujo de Conrad, no auge de seu tédio em relação à vida, foi convocado à aventura de mudar de posição e se tornar o comandante da embarcação, do futuro dos marujos que estavam sob suas ordens e sob sua responsabilidade.
A forma como o autor vai desvelando o processo de amadurecimento do seu personagem combina muito com a metáfora estabelecida de luz e sombra e com a maneira como é necessário fazer um processo de desfoque da luz sobre si mesmo em direção aos outros, para poder viver realmente um processo de amadurecimento como pessoa, como autoridade de si (como um ser digno) e também de outras pessoas. Conrad vai nos mostrando os vinte dias desse personagem, que equivalem a uma jornada de sua alma em direção ao mundo real, e à maneira como ele estabelece sua autoridade, muito além de viver o prazer e a aventura e de se livrar do tédio.
“Ocorreu-me que aquele homem atento que eu observava, como se fosse eu mesmo e também outra pessoa, não era exatamente uma figura solitária. Ele ocupava seu lugar em uma linhagem de homens que jamais conhecera, com nomes que jamais ouvira; mas que se guiavam pelas mesmas influências, cujas almas, em relação à humilde obra de suas vidas, não lhe escondiam nenhum segredo”.
São essas personalidades aliadas à natureza surpreendente que é a própria realidade do mar, que vão pincelando o retrato em transformação do jovem marujo, e que vão ensinando a cada situação, que é preciso ter um corpo adequado; uma voz modulada; uma saúde forte; uma disposição ágil e precisa para responder às demandas, sempre olhando para fora de si e para o que a vida está a exigir em cada momento, e não para seus delírios sobre como poderia ser a vida. E principalmente, vão mostrando ao leitor que existe uma grande diferença entre ter poder ou domínio sobre uma situação e ter autoridade sobre ela.
Também acompanhamos ao longo da narrativa os momentos de fragilidade, de medo, e de como as situações desafiadoras também podem fazer a paisagem perder totalmente sua luz e mergulhar em sombras profundas, que podem levar tanto a um comportamento indiferente em relação ao contexto, quanto a um sentimento de fracasso retumbante por não conseguir responder ao que a vida exige como mudança.
Esse livro veio parar em minhas mãos num momento muito interessante – já estamos no fim do ano, e agora já começamos a fazer nossas avaliações sobre o que foi possível elaborar diante da realidade que tínhamos que viver nesse ano; também como conseguimos colaborar com outras pessoas e poder ser e estar presente da melhor maneira possível nas relações; e ainda, se conseguimos realizar pequenos sobrevoos nos contextos, para pensar de maneira mais abrangente, sem sermos tomados pelas paixões cotidianas que acabam por ofuscar também a paisagem real, seja com excesso de luz ou com excesso de sombra nas nossas avaliações.
Agora já começa a despontar no horizonte a linha de sombra do próximo ano. Começamos a fazer planos de aventuras, novos projetos para nos lançarmos aos mares desconhecidos que nos esperam em 2024. E para que a vida não seja só uma permanente readequação de rotas e realização de tarefas, é preciso estar disposto a realizar plenamente a travessia dessa linha de sombra, sem esquecer que a maturidade é um processo contínuo, permanente e necessário.
Numa última conversa com o Capitão Gilles, já em terra, nosso capitão percebe o quanto a experiência o tornara mais velho. Mas, Gilles, da sua experiência de vida, assim o recebe:
“Você deve estar um tanto cansado a essa altura.” “Não”, disse eu. “Não cansado. Mas eu lhe direi como me sinto, capitão Giles. Eu me sinto velho. E devo mesmo estar. Todos os senhores aqui na terra parecem-me um bando de jovens ariscos que nunca tiveram nenhuma preocupação no mundo.” Ele não sorriu. Assumiu um ar insuportável de modelo a ser seguido. Então declarou: “Isso logo passa. Mas você parece mais velho – não há como negar.”
Ambos haviam aprendido sobre a luz e a sombra que incidem sobre a realidade.
E que em 2024, a gente também siga aprendendo, sem recusar as linhas que aparecerem à nossa frente.
Só para constar: não há marcação das páginas correspondentes de cada citação do livro porque a leitura foi feita num kindle, sem a marcação de páginas, só de posições. Mas a edição utilizada é da editora LP&M, a mesma que aparece na imagem no meio do texto.