Poder, autoridade e “A Linha de Sombra” do amadurecimento - o que podemos aprender com Joseph Conrad.

Em 2024, celebraremos o centenário da morte do escritor polonês radicado inglês, Joseph Conrad.

Conrad foi um homem do mar, e levou o mar para a sua escrita. Num artigo publicado por Daniel Fernandes, a explicação vem em ótimas palavras:

“Conrad converteu o mar numa moral. Fez questão de compreendê-lo como a encarnação do caráter de prova suprema para a hombridade do homem. Em sua concepção, o mar tem o privilégio de magnificar a coragem, pois só a luta desigual dá a medida de nossa grandeza, a fronteira última da bravura humana. Nele estão os limites das situações limítrofes em que exercitamos nossas ignoradas reservas de heroicidade. Por isso, seus heróis, transfigurados e surpreendidos pelo estrépito das potências naturais, revelam o conteúdo singular de seu temperamento, aquela concentração de elementos morais que fazem com que um Lord Jim, um Marlow, um Almayer sejam mais do que simples marinheiros, mais do que meros comparsas de um romance de aventuras marítimas, mas verdadeiros homens.”

É sobre amadurecer e tornar-se verdadeiramente um homem que trata o livro “A Linha de Sombra”. Não um homem no sentido do gênero masculino, mas no sentido de humanidade – sobre tornar-se uma pessoa adulta. E nesse livro acompanhamos a trajetória de um jovem marujo que, exatamente no momento em que decide pedir dispensa das viagens e passar um tempo em terra por sentir já um tédio ou um vazio existencial diante da sua própria vida, é surpreendido pela nomeação como comandante de uma embarcação para uma expedição que deve durar por volta de vinte dias.

 É esse vazio, esse tédio, que caracteriza um grupo tão grande de jovens, que não sabe muito bem o que pedir à vida ou buscar como futuro, que vai ser sacudido pela possibilidade de estar numa posição de poder e domínio, quando se trata desse personagem sem nome de Conrad. A ausência de um nome nos aproxima mais ainda dessa personalidade e das correspondências que ele pode ter com a nossa própria vida, e com as inúmeras vezes em que tivemos que ajustar as nuances de luz e sombra incididas sobre a imagem de nós mesmos e da vida que temos que responder.

Existe um certo conforto estranho no tédio. É o conforto do ambiente conhecido, das nossas tendências de comportamento conhecidas e repetidas, e o conforto de uma certa irresponsabilidade praticada, como se não devesse pertencer ao próprio indivíduo a vontade de girar a roda da própria vida, como se fosse possível dar a outrem essa responsabilidade, para depois queixar-se de não o ter conseguido. É uma atitude um tanto comum depositar numa possibilidade de aventura e prazer a ser conquistado a aniquilação do sentimento de tédio em si.

 Acontece que a vida nos guarda sempre linhas de sombra. São os limiares que registram a vida para além das nossas projeções de aventuras. As linhas de sombra são parte da realidade que se instala à nossa frente quando temos um passo real a ser dado. Não é possível saber o que está no futuro, e é disso que se trata a penumbra.

 O marujo de Conrad, no auge de seu tédio em relação à vida, foi convocado à aventura de mudar de posição e se tornar o comandante da embarcação, do futuro dos marujos que estavam sob suas ordens e sob sua responsabilidade.

A forma como o autor vai desvelando o processo de amadurecimento do seu personagem combina muito com a metáfora estabelecida de luz e sombra e com a maneira como é necessário fazer um processo de desfoque da luz sobre si mesmo em direção aos outros, para poder viver realmente um processo de amadurecimento como pessoa, como autoridade de si (como um ser digno) e também de outras pessoas. Conrad vai nos mostrando os vinte dias desse personagem, que equivalem a uma jornada de sua alma em direção ao mundo real, e à maneira como ele estabelece sua autoridade, muito além de viver o prazer e a aventura e de se livrar do tédio.  

“Ocorreu-me que aquele homem atento que eu observava, como se fosse eu mesmo e também outra pessoa, não era exatamente uma figura solitária. Ele ocupava seu lugar em uma linhagem de homens que jamais conhecera, com nomes que jamais ouvira; mas que se guiavam pelas mesmas influências, cujas almas, em relação à humilde obra de suas vidas, não lhe escondiam nenhum segredo”.

Dar ordens pode ser um gesto confortável quando não se tem a dimensão real do contexto e da verdadeira autoridade que se impõe no gesto – na responsabilidade que está implícita sob o que parece ser uma situação de domínio. E é exatamente a compreensão dessas nuances de estar sob a luz do poder, ou incidir a luz sobre os outros, entre o lugar de poder e o contexto de reponsabilidade que confere a autoridade a um líder, que vamos descobrindo a linha de sombra verdadeira entre a realidade e as nossas condutas; entre o presente que configura nossas ações, e o futuro que configura as consequências delas.

 

Outro ponto muito interessante da narrativa é a maneira como o autor coloca outros personagens para se relacionar com o comandante: 

  • Homens experientes, que sabem falar e calar, que sabem ser uma presença real para o jovem (Comandante Gilles, por exemplo);

  • homens corajosos na lida, que honram o trabalho acima de suas vontades pessoais, independentemente de estarem subjugados a um capitão, porque reconhecem seu lugar na composição do projeto como um todo, e sabem que muitas vezes é preciso ser a sombra para que outros sejam a luz e assim a paisagem como um todo possa se compor (é o caso do personagem Ransome, por exemplo);

  • homens também que deram suas vidas para ser marujo, e que preferem morrer a deixar sua vocação de lado (é o caso do Senhor Burns, que adoece na viagem e se recusa a desembarcar no meio do caminho);

  • e ainda homens que não conseguiram cumprir com o chamamento da vida, e entregaram-se ao tédio, à apatia, ao invés de estarem no centro do movimento de tudo (como o personagem estranho que não sai do porto e que assiste ao diálogo entre Gilles e nosso então marujo).

 São essas personalidades aliadas à natureza surpreendente que é a própria realidade do mar, que vão pincelando o retrato em transformação do jovem marujo, e que vão ensinando a cada situação, que é preciso ter um corpo adequado; uma voz modulada; uma saúde forte; uma disposição ágil e precisa para responder às demandas, sempre olhando para fora de si e para o que a vida está a exigir em cada momento, e não para seus delírios sobre como poderia ser a vida. E principalmente, vão mostrando ao leitor que existe uma grande diferença entre ter poder ou domínio sobre uma situação e ter autoridade sobre ela.

Também acompanhamos ao longo da narrativa os momentos de fragilidade, de medo, e de como as situações desafiadoras também podem fazer a paisagem perder totalmente sua luz e mergulhar em sombras profundas, que podem levar tanto a um comportamento indiferente em relação ao contexto, quanto a um sentimento de fracasso retumbante por não conseguir responder ao que a vida exige como mudança.

Esse livro veio parar em minhas mãos num momento muito interessante – já estamos no fim do ano, e agora já começamos a fazer nossas avaliações sobre o que foi possível elaborar diante da realidade que tínhamos que viver nesse ano; também como conseguimos colaborar com outras pessoas e poder ser e estar presente da melhor maneira possível nas relações; e ainda, se conseguimos realizar pequenos sobrevoos nos contextos, para pensar de maneira mais abrangente, sem sermos tomados pelas paixões cotidianas que acabam por ofuscar também a paisagem real, seja com excesso de luz ou com excesso de sombra nas nossas avaliações.

Agora já começa a despontar no horizonte a linha de sombra do próximo ano. Começamos a fazer planos de aventuras, novos projetos para nos lançarmos aos mares desconhecidos que nos esperam em 2024. E para que a vida não seja só uma permanente readequação de rotas e realização de tarefas, é preciso estar disposto a realizar plenamente a travessia dessa linha de sombra, sem esquecer que a maturidade é um processo contínuo, permanente e necessário.

 Numa última conversa com o Capitão Gilles, já em terra, nosso capitão percebe o quanto a experiência o tornara mais velho. Mas, Gilles, da sua experiência de vida, assim o recebe:

“Você deve estar um tanto cansado a essa altura.” “Não”, disse eu. “Não cansado. Mas eu lhe direi como me sinto, capitão Giles. Eu me sinto velho. E devo mesmo estar. Todos os senhores aqui na terra parecem-me um bando de jovens ariscos que nunca tiveram nenhuma preocupação no mundo.” Ele não sorriu. Assumiu um ar insuportável de modelo a ser seguido. Então declarou: “Isso logo passa. Mas você parece mais velho – não há como negar.”

Ambos haviam aprendido sobre a luz e a sombra que incidem sobre a realidade.

E que em 2024, a gente também siga aprendendo, sem recusar as linhas que aparecerem à nossa frente.

Só para constar: não há marcação das páginas correspondentes de cada citação do livro porque a leitura foi feita num kindle, sem a marcação de páginas, só de posições. Mas a edição utilizada é da editora LP&M, a mesma que aparece na imagem no meio do texto.

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